Surgiu uma nova língua



Artigos
José Goulão


07 de Fevereiro, 2012

O sistema económico que dirige a globalização faz-se acompanhar de uma linguagem própria à medida da sua deturpação de valores, de direitos e também do seu desrespeito pelo ser humano.

Uma linguagem praticamente traduzida em todas as línguas – ou não fosse um processo global - e que, através da adulteração de sinónimos consoante as circunstâncias em que são aplicados, procura adoçar o amargo, esconder o que é exploração, substituir palavras que traduzem violações de direitos e maus-tratos sociais.

A esta linguagem mentirosa, hipócrita, humanamente insensível e culturalmente obscena há quem chame já, e com toda a propriedade, uma espécie de neo-língua. Já repararam certamente que na comunicação social servidora do sistema neoliberal a palavra “trabalhadores” já foi praticamente suprimida.

A que a substitui preferencialmente nem sequer é sinónima: “colaboradores”.

Isto pode parecer um pormenor, uma deturpação fruto da iliteracia que o sistema neoliberal acarinha, mas não é.

Os trabalhadores trabalham, têm os seus patrões, o Estado ou entidades privadas; os colaboradores colaboram, como se tivessem passado a ter com as suas entidades patronais relações de associação, de cumplicidade, de partilha de objectivos comuns.

Uma troca de palavras suprimiu uma contradição de fundo, pretende aniquilar com uma artimanha a apropriação da mais-valia do trabalho enquanto esta se agrava através do cada vez maior desrespeito pelos direitos e vínculos laborais. Também já se aperceberam que nesta época em que o desemprego se tornou uma praga os despedimentos desapareceram. Já ninguém é despedido.

Os despedidos passaram a ser demitidos, dispensados, excedentários porque os seus postos de trabalho foram extintos.

Os trabalhadores, melhor dizendo, os “colaboradores”, são vítimas “indispensáveis” da necessidade de “salvar as empresas”, de as “enxugar” de “suprimir as gorduras” das economias.

Estes casos são apenas exemplos de uma grande burla linguística que invade o léxico económico e social.

Os empréstimos agiotas do FMI e agora das troikas que se obtêm juntando-lhe a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu nem sequer são créditos, são “ajudas”; e para percebermos a medida da “ajuda” recorramos ao caso de Portugal que para obter 78 mil milhões de euros tem de pagar 34 mil milhões só de juros, fora as exigências acopladas, chamadas “reformas estruturais” para “curar” a economia, “moralizar os gastos”, isto é, proibir os Estados de investir no crescimento.

E por aí fora: flexisegurança é um neologismo que verdadeiramente significa a segurança patronal através da flexibilidade para despedir; a concertação social é a maneira de a aliança entre os governos e as associações patronais imporem aos sindicatos que aceitem penalizações sociais, passando os que as recusam a serem “extremistas”, “intransigentes”, incapazes de “conviver com o jogo democrático”.

Exemplos disso não faltam. É um acto cívico detectá-los e denunciá-los.

FONTE: http://jornaldeangola.sapo.ao/19/46/surgiu_uma_nova_lingua

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